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Aids e o Direito de família - Marco Antonio Fanucchi
Revista USP - Dossie AIDS 33

 

           As questões postas à tutela jurisdicional do Estado, no geral, são acolhidos tecnicamente dentro dos fatos e do direito. Forçoso admitir, entretanto, que os “casos”de família, ante o evidente conteúdo subjetivo humanístico que carregam, levam a inevitáveis reflexões. Isso porque as ações ligadas a essa matéria, preferencialmente, tem por objeto pedidos de valores inestimáveis, uma vez que envolvem fatos particulares e emocionais.

            Sendo assim, não há como se atribuir valor monetário à conquista da guarda ou de um direito de visitas a um filho; à apuração da necessidade de se receber alimentos; ao reconhecimento da paternidade; enfim, ao resgate da dignidade, muitas vezes perdida, nas relações pessoais. Correto está Cigagna Júnior, quando afirma “[...] sem medo de errar, que, embora desgastante, o direito de família é aquele que nos gratifica mais, talvez por vivenciarmos as paixões humanas, buscando compreendê-las e equacioná-las”

            Assim, o verdadeiro direito de família longe está da imagem distorcida do litígio de um casal em torno do determinado patrimônio a ser partilhado. Segundo Cahali, “há nos nossos dias uma convicção generalizada de que a família moderna passa por uma crise profunda, lamentando os autores a sua decadência e desagregação’. E continua, citando Caio Mário: “Para alguns juristas, esta crise seria mais aparente que real, pois o que se observa é a mutação dos conceitos básicos, estruturando o organismo familiar à moda do tempo, que forçosamente há de diferir da conceptualística das idades passadas’. Segue, aí citando Orlando Gomes:

“Ou se afirmando que ‘se modificaram radicalmente as condições da vida familiar, determinando a adoção de novas regras que emprestam ao Direito da Família fisionomia nova. Todas as relações de família se submetem a novos critérios, podendo-se afirmar que ela é parte do Direito Civil que mais reclama atualização’. [...] Em realidade, porém, é exatamente nesta notória mutação dos conceitos básicos, nestes novos critérios a que se submetem as relações do grupo societário, que reside a crise da família, na exaltação de pretensos valores novos e contingentes e que se assinala pelo enfraquecimento da disciplina familiar, pelo relaxamento dos costumes, pelas liberalidades e concessões de toda ordem como justificativa do descarte de preconceitos tradicionais propiciando, com isto, um aumento progressivo das separações entre os cônjuges, em um clima prenhe de irresponsabilidade pela sorte da família e da prole”.

            Como se nota, não é difícil concluir que as questões de família, complexas pela própria natureza, quando carregam o elemento AIDS na causa do pedido, extrapolam o emocional da simples tutela jurisdicional. Não importa se a parte envolvida é ou não soropositivo assintomático, mesmo porque, conforme anotado no Guia Médico da Associação Paulista de Medicina,

“[...] o contaminado como HIV pode não apresentar sintomas ou ter breves indisposições por uma ou duas semanas, com sintomas similares ao de outras infecções viróticas. Passam-se meses, em geral anos, sem que sintoma ou sinal de infecção se manifeste, mas o indivíduo pode contaminar outras pesssoas nesse período. Durante esse tempo o sistema imunológico vai sendo prejudicado pela perda de um tipo particular de célula sanguinea branca, o linfócito T4. Os sintomas acabam se desenvolvendo. Tipicamente, seguem-se uma sucessão de infecções mais graves, perda de peso profunda, diarréia crônica e em geral um tipo de câncer”

Do mesmo modo, a realidade social da AIDS, formada pelo preconceito e desinformação, não diferencia o “doente” do “portador”, pelo menos para a maioria da população. Assim, quando se trata de AIDS no direito de família, envereda-se por inevitáveis reflexões do comportamento humano, seus sintomas na sociedade e principalmente no judiciário, o qual detém a tutela constitucional, vendo-se obrigado a adequar-se aos fatos apresentados.

            A Aids, embora constitua fato novo na sociedade moderna, encontra amparo e enquadramento na doutrina e legislação do país preexistentes. Limongi França, ao tratar do assunto, definiu que “a problemática jurídica da Aids pode ser basicamente enfocada da seguinte maneira: I – em relação ao Direito Privado; II – em relação ao Direito Social; III – em relação ao Direito Público; IV – em relação à responsabilidade Civil e Criminal”.

            Nessa linha de raciocínio, dentro do Direito Privado aborda-se o direito de família, que ali reside juntamente com o direito da “personalidade e patrimônio”. Especificamente, no direito da família, pode-se analisar a existência da AIDS desde o período pré-nupcial até a relação entre os cônjuges e seus reflexos na separação e filhos.

            A família é fruto de amor verdadeiro, independentemente do casamento, reconhecendo e amparando a lei a simples união estável entre homem e mulher. Óbvio, entretanto, que sua constituição pelo matrimônio pode ser melhor analisada à luz do direito, já que o casamento é um ato formal.

            O direito ao casamento, embora revele um ato de vontade exclusivo dos nubentes, atende alguns requisitos como o limite mínimo de idade e o óbice ao parentesco vertical ou próximo.

            A Aids, por seu turno, não pode ser considerada causa impeditiva do casamento, assim como quaisquer outras moléstias graves, desde que os nubentes declarem sua real condição, sob pena de anulação de casamento, conforme previsto no art. 219, III, do Código Civil, que determina a anulação do casamento quando existir “a ignorância, anterior ao casamento, de defeito físico irremediável ou de moléstia grave e transmissível, por contágio ou herança, capaz de por em risco a saúde do outro cônjuge ou de sua descendência”.

Aliás, embora exista a possibilidade de anulação, porque a falta da declaração revelaria o chamado erro essencial quanto à pessoa, a lei não se apresenta contraditória ao permitir o casamento com o portador do vírus, já que, ao tratar da separação do casal (que difere da anulação), a Lei do Divórcio, ao se referir a “moléstia grave” como causa da separação do casal, acolhe somente as doenças de caráter mental, silenciando sobre as de ordem biológica e física. Torna-se claro, entretanto, que é possível a separação do casal fundada em “conduta desonrosa ou qualquer ato que importe em violação dos deveres do casamento e torne insuportável a vida em comum” (art.5, caput, da Lei do Divórcio), fatos estes eventualmente vinculados à Aids.

Da mesma forma, dado o poder cautelar geral atribuído ao juiz, pode-se conceder alvará para que uma das partes, visando resguardar o seu inalienável direito à vida (já que as doenças atreladas à Aids podem levar à morte), possa se abster da obrigação do débito conjugal, separando os corpos (dentro ou fora do lar conjugal), levando ao divórcio pelo lapso temporal desta separação.

Por fim, é preciso ter presente a obrigação legal dos cônjuges à assistência mútua no caso de enfermidade, sob pena de o faltoso ser considerado culpado pela separação do casal, com a condenação à prestação da verba alimentar e perda do nome de casada, no caso da esposa.

Aqui, em síntese, a realidade legal Aids/Casamento, a qual, evidentemente, desdobra-se por outras variáveis. Assim, ante uma separação e a existência de filhos, os alimentos, guarda e visitação de filhos merece melhor análise, inclusive porque o vírus da Aids pode ou não ser congênito.

Inicialmente se observa que a portadora do vírus da Aids tem assegurado o direito à procriação e o embrião à vida, uma vez que o Código Penal não autoriza o aborto necessário para os casos de moléstia grave, como a Aids. Com o nascimento da criança, o Estado ampara juridicamente todas as relações de família no que concerne aos alimentos (sejam devidos pelos descendentes ou ascendentes), pátrio poder e guarda dos filhos, no caso de separação do casal.

O Pátrio Poder, obviamente, não se suspende ou se extingue por causa da Aids (arts. 392 e seguintes do Código Civil), permanecendo o conjunto de direitos e obrigações dos pais em relação aos filhos.

Evidente que, caso seja patente o uso indevido do pátrio poder, colocando em risco o bem-estar de filho aidético ou mesmo relegando-o ao abandono, pode-se perder ou tê-lo suspenso, além de ficar sujeito a processo criminal.

A guarda dos filhos e o direito a visitas, por sua vez, não podem ser prejudicados pela existência da Aids em qualquer das partes envolvidas. É evidente que cada caso deve ser analisado de forma personalizada, dando-se preferência ao cônjuge não contaminado, visando preservar o doente e os filhos.

Das relações familiares, finalmente, deve-se analisar a mais polêmica situação da Aids e o direito de família: os alimentos.

“[...] engana-se Beudant ao afirmar que a disciplina jurídica da obrigação alimentícia oferece um interesse prático muito grande, mas que seria mínima a sua importância doutrinária. Trata-se, em realidade, de instituto cujos princípios são remarcados por uma acentuada complexidade de seus estudos; do dissídio sobre a pluralidade de seus aspectos, resulta um variegado de fórmulas legislativas e jurisprudenciais que a experiência da vida apresenta diuturnamente.

O ser humano, por natureza, é carente desde a sua concepção, como tal, segue o seu fadário até o momento que lhe foi reservado como derradeiro; nessa dilação temporal – maios ou menos prolongada – a sua dependência dos alimentos é uma constante, posta como condição de vida. Daí a expressividade da palavra ‘alimentos’, no seu significado vulgar: tudo aquilo que é necessário à conservação do seu humano com vida; ou, no dizer de Pontes de Miranda, ‘o que serve à subsistência animal’”.

Na realidade a controvérsia tem inicio na distorção que o instituto recebeu nos últimos anos, especialmente com a Lei dos Alimentos (5.478/68). Tal norma, eminentemente processual (uma lei de rito), fez revogar para muitos a norma geral do art. 399 do Código Civil, instituído realmente para proteger quem necessita. Distorceu-se o instituto, admitindo-se, muitas vezes, sua utilização visando a aposentadoria de mulheres separadas, premiando o parasitismo social.

Nossos tribunais, no mundo atual, não tutelam este tipo de imoral e vitalícia pensão de ex-mulher ociosa, conforme relata Villa da Costa, de forma brilhante:

“É evidente que o Magistrado precisa estar atento às nuances de cada caso, sobretudo neste momento histórico em que as mulheres procuram libertar-se de longo período de deletéria submissão, herança da fase do ‘homem caçador e pescador’, herança de despótico domínio pela força, resquício de promessas nupciais de servil submissão.

O próprio sustento é dever natural: ‘comerás o pão com o suor do teu rosto’. A inércia, a estagnação, o comodismo, a dependência, além de contrariarem a dinâmica da própria vida, escravizam o espírito, sufocam a personalidade, humilham a eminentemente rica natureza humana e aviltam a dignidade. A pensão não se abaliza pelo fato de ser um rico e outro pobre, necessariamente. Pauta-se mais por estar ou não apto a se manter.

A c.8ª.Câmara, decidindo à luz da igualdade de condições entre homens e mulheres, impostas pela atual Constituição Federal, teve a oportunidade de expender longos comentários embasadores da tese libertária da mulher. Veja-se, por exemplo, este trecho, extraído da ap. 181.926.

‘Este Egrégio Tribunal tem dado procedência de exoneração de pensão, quando a mulher possa trabalhar e tenha rendimentos. À guisa de exemplo, vale transcrever parte do v.acordão, por mim relatado, na ap.civ.179.954-1/9 da c.8ª.Camara. Diz o v.aresto: ‘Ainda que em igualdade de condições financeiras, não se deve mais verberar o homem, por uma espécie de automatismo, impingindo-lhe, porque é homem, o dever de prestar alimentos. A igualdade de tratamento tem de imperar, em obediência aos princípios constitucionais. Ademais, no contexto sociopolítico do momento, onde as forças femininas com muita propriedade, manifestam-se em pleito de tratamento igualitário, não há mais lugar para o culto do protecionismo exacerbado da mulher, sobretudo se exerce ou pode exercer algum trabalho para o próprio sustento.

Hoje, as mulheres, como os homens, exercem, em igualdade de condições, as mais variadas profissões, tais como as de engenheiras, aeronautas, arquitetas, médicas, psicólogas, advogadas, promotoras, juízas, delegadas de polícia e tantas outras, de tal sorte que, para que recebam pensão alimentícia de ex-marido, a prova da necessidade há de ser robusta, assim como a do homem que, em caso de necessidade, devesse a elas se dirigir. São iguais’”.

            Quando o assunto é “alimentos”, não haverá erro se a analise for feita à luz da norma geral, emque a necessidade e a impossibilidade de o alimentando se manter por si só constituem condições essenciais ao acolhimento do pedido. Se o portador do vírus está impossibilitado de trabalhar em virtude de sua enfermidade ou mesmo preconceitos, pode e deve pleitear alimentos de quem tenha condições de prestá-los. A respeito, Cahali menciona Clóvis Beviláqua: “A palavra alimentos tem, em direito, uma acepção técnica, de mais longa extensão do que na linguagem comum pois compreende tudo o que é necessário à vida: sustento, habitação, roupa e tratamento de moléstias”.

“[...] relacionada ao direito à vida e no aspecto da subsistência, a obrigação alimentar é um dos principais efeitos que decorrem da relação de parentesco. Trata-se de dever, imposto por lei aos parentes, de auxiliar-se mutuamente em necessidades derivadas de contingências desfavoráveis da existência. Fundada na moral (idéia da solidariedade familiar) e oriunda da esquematização romana (no denominado officium pietatis), a obrigação alimentar interliga parentes necessitados e capacitados na satisfação de exigências mínimas de subsistência digna, incluindo-se, em seu contexto, não só filhos, mas também pessoas outras do círculo familiar”.

Arnaldo Rizzardo, na obra Direito de Família (vol.II, p.692), ressalta que “a jurisprudência tem concedido alimentos a quem, embora com possibilidade de trabalho, venha a necessitar de prestação ou da complementação, especialmente, se já dificuldades em conseguir trabalho remunerado por razão de sexo, de idade, de cultura, ou de outra circunstância marcante que dificulte o emprego, ou impeça uma remuneração mais elevada”.

            Naturalmente é dever dos genitores manter e sustentar seus filhos, não só alimentando-os, mas também dando todo o necessário amparo para sua subsistência socual e psicológica. No caso da Aids, a obrigação dos pais no sustento ao filho impossibilitado de lutar sozinho, independente de já haver atingido a maioridade civul, soma-se, sem dúvida, à obrigação moral de arcar com o ônus, pelo menos financeiro, necessário à sua sobrevida.

            Dispõe o artigo 397, do Código Civil, que “o direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros.
Acerca desse dispositivo de lei, Cahali, na obra mencionada, tece as seguintes considerações: “Efetivamente, com a maioridade, pode surgir obrigação alimentar dos pais em relação aos filhos adultos, porém, de natureza diversa, fundada no artigo 397 do Código Civil; essa obrigação diz respeito aos filhos maiores que, por incapacidade ou enfermidade, não estiverem em condições de prover a sua própria subsistência”. Da mesma forma, de acordo com estabelecido no parágrafo único do art.45 da Lei no. 6.697, de 10/10/79 (CM), “a perda ou a suspensão do pátrio poder não exonera os pais do dever de sustentar os filhos”.

            Por tudo isso a conclusão q eu se chega é de que o Estado, pelo menos através do Poder Judiciário, com os instrumentos que possui, pode tutelar o direito do portador do vírus da Aids na relação familiar, sendo necessário apenas a adequação da norma ao fato concreto e, principalmente, a mudança da mentalidade de todos os envolvidos pois:
“[...] mudar mentalidades é interpretar leis novas ou códigos antigos, de acordo com os direitos dos cidadãos e da sociedade. Isso significa adequar a prestação jurisdicional aos novos costumes [...] visando sempre manter as conquistas constitucionais, instrumentalizando-as para atingir-se o anseio de todos a uma magistratura voltada para a defesa intransigente da cidadania e dos direitos humanos”.

           

Sem dúvida a “mudança de mentalidade” no resgate da cidadania é a palavra de ordem quando se fala em fazer JUSTIÇA, principalmente aos que padecem de enfermidade social, fruto do preconceito e discriminação.

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Dilermando Cigagna Júnior. “Temas de Direito de Família; Culpa – Separação Judicial” in Revista dos Advogados no. 29/89, p.11.

Yussef Said Cahali, Divórcio e Separação. p.3.

Associação Paulista de Medicina, Guia Médico. São Paulo, BestSeller, 1994, p.149.

Limongi França. Aspectos Jurídicos da AIDS, Revista dos Tribunais, 661/14.

Yussef Said Cahali. Dos Alimentos. Revista dos Tribunais, p.1.

Revista das Tribunais, 710/47

Yussef Said Cahali. Dos Alimentos, pp.2-3.

Carlos Alberto Bittar, Direito de Família, Forense Universitária, p.252.

Caetano Lagrasta Neto, In Apomagis I (I), set-dez. de 1996. PP.177-82


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